No final de 2021, o Falcão, maior nome do futsal, participou no podcast Podpah (276). A conversa toda foi muito interessante, pois diversos assuntos foram abordados, desde a iniciação no esporte, a transição para o futebol, entre vários momentos na Seleção Brasileira de futsal. O trecho que mais me chamou a atenção, ocorreu aos 0:20:51, em que surge a discussão sobre o que é o dom do esporte, que alguns atletas parecem ter e outros não. Na opinião do Falcão, existe o dom, ou seja, uma habilidade extraordinária que não é treinável, que é inata de alguns atletas, por isso são diferentes da maioria dos atletas profissionais. Quem quiser acompanhar esse trecho, poderá ver no vídeo abaixo: Na mesma resposta, ele cita o exemplo de recepcionar a bola no peito e equilibrá-la, sem deixa-la cair no chão, mesmo em jogos oficiais, com adversários pressionando-o. No entanto, os mais atentos devem ter reparado que, o próprio Falcão cita que fazia esse tipo de domínio no peito várias vezes após os treinos. Eis aqui o centro dessa discussão. A habilidade extraordinária, incomum na maioria dos atletas é um dom ou pode ser treinável? Para começar a compreender essa questão, podemos analisar como foi a infância dos craques: o próprio Falcão, Ronaldinho Gaúcho, Ronaldo Fenômeno, Rivaldo, Romário, Zico, Bebeto... Geralmente jogavam bola boa parte do dia, quase todos os dias, nas quadras, campos, ruas e terrenos baldios. Ou seja, foram expostos a práticas que promoveram o aprendizado. Ah, mas não tinha professor? Ainda bem que não, pois assim eles eram livres para brincarem com a bola. Se tivesse professor, provavelmente estaria orientando os meninos a passarem a bola para que a equipe evoluísse melhor. Brincando com amigos na rua, cada menino fazia o que queria com a bola. Pergunte a um desses craques quando ele começou a tentar fazer um drible elástico? A resposta, na infância. Pergunte a um zagueiro profissional, quantas vezes na vida ele já tentou dar um drible elástico... poucas vezes. Então essa é a diferença, uns treinaram desde cedo, outros quase nunca. Um exemplo interessante são as moças que jogam a “altinha” nas praias do Rio de Janeiro, demonstrando um nível de habilidade superior a maioria dos jogadores amadores que jogam futebol aos finais de semana. No vídeo abaixo aparece uma dupla, mas é comum ver várias rodas com várias moças fazendo este mesmo tipo de brincadeira nas praias cariocas. Veja no vídeo abaixo outro exemplo do que foi treinado. Existem várias mulheres que participam do futebol free style, com um nível de habilidade incomum até para atletas profissionais de futebol. Quantos atletas profissionais de futebol conseguem fazer o que ela faz? Poucos, porque não treinam isso. Novamente aqui o centro da discussão. Os atletas profissionais precisam ter a habilidade dessa moça do free style? Se tiverem, poderão ser melhores, mas não é esse tipo de habilidade que os credenciarão para se tornarem profissionais, mas aquilo que conseguem fazer durante um jogo oficial, seguindo as regras da modalidade e a eficiência tática que o jogo exige. Por exemplo, Johan Cruyff, o maior nome do futebol holandês, falou uma das frases mais marcantes no futebol: “Técnica não é ser capaz de fazer mil embaixadinhas. Qualquer um faz isso com prática e pode trabalhar em um circo. Técnica é passar a bola com um único toque, com a velocidade correta, no pé certo do seu companheiro” (Johan Cruyff). Ou seja, tudo que o atleta se dispõe a treinar, ele conseguirá ganhar certo nível de habilidade. Agora, de que forma isto será aplicado na prática é que fará toda a diferença, se será um craque do jogo ou apenas um malabarista com a bola. O craque é aquele que demonstra habilidade extraordinária para aquilo que é específico do esporte que ele pratica, por isso, é capaz de decidir jogos com jogadas improváveis, como dribles, chutes de voleio ou bicicleta e passes precisos e inesperados. Para os que almejam tornarem-se técnicos esportivos, é importante saber sobre as fases sensíveis de desenvolvimento motor. São os períodos mais adequados de desenvolvimento das capacidades, de acordo com a idade das crianças. Exemplo, os ganhos de coordenação motora que ocorre na infância, desde os 5 até os 12 anos de idade. Esse é o momento em que o corpo está se desenvolvendo e que se forem ensinadas e praticadas as habilidades do futebol, a coordenação específica será amplamente desenvolvida. Nenhum adolescente conseguirá ganhar a mesma habilidade de alguém que se desenvolveu desde a infância. Para ter coordenação motora, não basta apenas você saber como faz o movimento só com o cérebro. Sua musculatura e seu corpo precisam corresponder de forma precisa os comandos do seu cérebro. Por exemplo, quantas vezes vocês já ouviram isto? “Eu sei como é a técnica do chute, mas só sei chutar com a perna direita, minha esquerda é fraca, o chute não é bom”. Todos nós sabemos escovar os dentes e cortar um pedaço de carne com a faca. Faça um experimento. Troque a escova ou a faca de mão e faça aquilo que você já sabe. Conseguirá fazer, mas com uma dificuldade muito maior do que se fosse com o braço “treinado”. Só que estes são exemplos mais simples de coordenação, com movimentos repetitivos. A mesma coisa ocorre com a escrita, porém numa complexidade maior, experimente trocar a caneta de mão e veja o resultado. No caso dos esportes em geral e do futebol em específico, a complexidade de movimentos é muito maior, pois exige movimentação de todo o corpo, interação com a bola, com os colegas de equipe e dos adversários, tudo no tempo certo e geralmente em alta velocidade. Sem essas complexidades, fica mais fácil aprender. A maioria das crianças e atletas “comuns” acostumam jogar com espaço e tempo. Isto é, aprendem a passar, lançar e chutar com tempo para pensar e espaço para ajeitar o corpo sem oposição. Assim fica fácil aprender para jogar, mas isto é o básico do futebol. Agora voltamos ao futebol de rua quase anárquico, a correria do jogo informal não possibilita espaço e tempo, exigindo maiores adaptações motoras dos praticantes. Jogadores habilidosos são acostumados a ter marcação próxima, isto significa que aprendem bem a proteger a bola e a driblar em espaços pequenos. É um nível mais avançado de futebol. Quantos professores estimulam isso nas aulas? Ou só estão pensando em formar equipes? Formar equipes é um outro problema, porque quando meu foco é na equipe, vou ajeitar o time para encobrir as falhas individuais dos meus jogadores. É aqui que a maioria dos professores erram no início da formação esportiva, pois priorizam a equipe em vez do aprendizado individual. Exemplo, zagueiro que tem passe ruim, o volante busca a bola no pé dele. Lateral que tem dificuldade de cruzar, não avança até o ataque, deixa o meia fazer esta função. Volante que tem dificuldade de chutar de longe não chuta, passa a bola para o meia fazer... e assim vou amenizando as falhas dos jogadores em benefício da equipe. Mas o meu foco deveria ser formar jovens jogadores habilidosos e completos ou ganhar títulos? No fim, teremos uma equipe bem treinada recheada de jogadores incompletos. Bom para o professor que se promove com os resultados, ruim para os atletas que querem seguir carreira em outros clubes. Agora, reflita sobre a personalidade dos craques. Geralmente são os corajosos, que chamam o jogo para eles, querem a bola toda hora, não se escondem num jogo difícil. Esses mesmos na infância, geralmente eram os “fominhas”, queriam a bola toda hora, tentavam os dribles e os chutes sem medo de errar. Em relação aos colegas, até que gostavam disso, principalmente nos jogos difíceis, que alguém resolvesse o jogo: era só jogar a bola no craque! Para concluir, devemos compreender que a complexidade de formar um craque vai muito além da habilidade técnica. Depende de diversos fatores, como a quantidade de horas de prática que o indivíduo foi exposto na infância e adolescência, da personalidade em ser mais aguerrido, em ser mais corajoso. Depende também da compreensão da lógica do jogo (noção tática), da movimentação correta, do passe na direção e no tempo certo. Por fim e não menos importante, depende da capacidade física, como a agilidade, a velocidade, a força e a resistência. Organizar todos estes conteúdos, de acordo com o crescimento e as etapas de desenvolvimento das crianças e adolescentes é a base do planejamento da formação de atletas em longo prazo que os clubes esportivos buscam aperfeiçoar diariamente.
1 Comment
Lucinei Mazzer
14/2/2022 09:34:43
Ótima e didática análise. Parabéns!
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Formação de Atletas
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Agosto 2024
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