No Brasil, nos últimos anos, muito tem sido discutido a respeito da forma como clubes de futebol são geridos, e temas como clubes virando SAF, clubes falindo como associações civis sem fins lucrativos, falta de profissionalismo dentro dos mesmos, têm ganhado cada vez mais enfoque. Mas e a gestão do futebol no resto do mundo, como acontece? A título de comparação, onde o Brasil se encontra quando colocado lado a lado com outros países? BRASIL No Brasil, vemos a maioria dos clubes adotarem o modelo de associação civil sem fins lucrativos, o qual não visa o lucro, sendo toda receita que entra usada para pagar as obrigações financeiras do clube, como salários, manutenção, viagens, etc. Em casos raríssimos, se não inexistentes, ao sobrar algum montante, que seria o lucro, o valor teoricamente deve ser reinvestido na organização, seja para contratar novos atletas, investir na infraestrutura, etc. O modelo de associação civil sem fins lucrativos é isento de várias tributações, como Imposto de Renda de Pessoa Jurídica, CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido) e Cofins, sendo isso um atrativo para os clubes. Porém, é também um modelo conhecido como não profissional dentro do futebol, caracterizado por muita politicagem e gestores amadores. Os políticos (conselho deliberativo, fiscal e presidente) são eleitos por associados dos clubes e têm mandatos curtos, o que os leva a buscarem objetivos de curto prazo para associarem seus nomes à grandes conquistas, como um título, a contatação de uma estrela do esporte, etc. Esses políticos não são remunerados (salvo exceções), tendo geralmente uma fonte de renda fora do futebol, dedicando-se ao clube em outros momentos, porém, tomando decisões que deveriam ser tomadas por profissionais especializados que vivem o dia a dia do clube. Outro ponto que caracteriza esse modelo é alta rotatividade de funcionários que entram e saem de acordo com a vontade da nova presidência - trocou presidente/diretoria, muito provavelmente trocarão alguns funcionários, sendo contratadas pessoas indicadas pelos mesmos. Em 2021, um novo cenário se instalou no Brasil, com a aprovação de Lei 14.193 da SAF (Sociedade Anônima do Futebol), que permite e incentiva os clubes de futebol a deixarem de ser associações sem fins lucrativos e tornarem-se empresas. Para isso, o clube não pode ter participação de nenhum membro de sua associação civil originária nos conselhos de administração e nos conselhos fiscais, o que traz mais profissionalização na gestão. O modelo SAF também viabiliza e traz mais segurança para a entrada de investidores, os quais podem adquirir o clube em pequenas partes por ações, ou adquirir grande parte, se tornando sócio majoritário. Dentre as vantagens da SAF para a maioria dos clubes que vivem superendividados, temos incentivos para pagamento de dívidas fiscais, possibilidade de recuperação judicial quanto às dívidas privadas, um regime tributário especial, etc. O Cruzeiro, por exemplo, teve sua SAF comprada em abril de 2022 por Ronaldo Nazário (Tara Sports), forma que acharam para não quebrarem após baterem R$1 bilhão em dívidas. Ronaldo é dono e sócio majoritário do Cruzeiro Esporte Clube SAF, com 90% das ações. Gabriel Lima é o CEO, e assim como outros funcionários, foi contratado por sua capacidade para a respectiva função, não mais por politicagem. Sérgio Santos Rodrigues, que era presidente do Cruzeiro antes da SAF, continua no cargo até final de 2023, sendo agora presidente da associação originária, a qual tem 10% da SAF e cuida dos patrimônios do clube, como a sede administrativa e os clubes sociais. Entre outros exemplos, temos o Cuiabá Esporte Clube SAF, clube empresa desde sua fundação, tendo como dono desde 2009 a família Dresch. Em dezembro de 2021 decidiram se tornar SAF, buscando as melhores condições fiscais que o modelo oferece, mantendo os donos originais, sendo Alessandro Dresch o presidente, e Cristiano Dresch o vice-presidente. O Botafogo, assim como o Cruzeiro, vendeu 90% de suas ações para o americano John Textor em março de 2022, transformando-se em S.A.F BOTAFOGO. O presidente do clube antes da SAF, Durcesio Mello, ficou no cargo de presidente do conselho diretor na associação originária, não mais tratando de assuntos do futebol e sim quanto à parte social e esportes olímpicos. Thairo Arruda é o diretor da SAF, e o clube busca por um CEO esse ano. A SAF não é a solução definitiva dos clubes, assim como temos associações civis indo bem, como o Flamengo e Athletico Paranaense, podemos ter SAFs que não vinguem do jeito que esperávamos, mas pelo menos elas trazem uma maior profissionalização e transparência aos clubes, que agora correm o risco de falir como qualquer empresa. ALEMANHA Vamos começar a falar de Europa agora, onde o futebol é (pelo menos) visto como um meio que gera rios de dinheiro e super profissionalizado. A Alemanha, com medo de perder a tradição de seus clubes, criou o modelo de gestão 50+1. Antes de 1998 os clubes alemães eram todas associações civis sem fins lucrativos, porém, a partir desse ano, a DFB (Federação Alemã de Futebol) permitiu a abertura de capital nos clubes para investimentos externos, mas regulada pela regra 50+1, protegendo as associações originárias dos clubes e seus associados dos investidores que querem entrar e fazer mudanças radicais. Por conta da regra, a associação civil é obrigada a manter no mínimo 50% + 1 das ações, o que dá a ela maior poder de decisão, podendo os outros 49% serem negociados com investidores. Isso valoriza muito a participação dos torcedores nas decisões, já que esses têm direito de voto como associados, porém, afasta um pouco grandes investimentos, pois não importa quanto as empresas invistam, elas nunca terão poder de decisão suficiente dentro do clube. Essa regra impõe certa limitação no futebol alemão, que vai ficando para trás quando comparado com outros campeonatos que têm muito mais dinheiro, podendo contratar melhores jogadores, ter melhor estrutura, o que consequentemente aumenta a competitividade perante os outros. Em 2018 a Federação Alemã organizou uma votação com os clubes da Bundesliga e Bundesliga 2 a respeito da manutenção ou não do modelo 50+1, e a maioria foi favorável à manutenção da regra, assim como os torcedores. Sobre a regra, há uma exceção que acontece no caso de uma empresa/pessoa investir no clube por 20 anos continuamente, tornando-se assim apta a reivindicar a maioria dos direitos de voto da organização. A questão vai então para avaliação da federação alemã, que pode permitir ou não. Isso aconteceu no TSG 1899 Hoffenheim, clube criado em 1899, e que tem desde 1990 o apoio financeiro de Dietmar Hopp, cofundador da empresa SAP (software). Por ter mais de 20 anos de contribuição no clube, Hopp hoje tem 96% das ações da organização, porém, é odiado no futebol alemão por ser visto como alguém que usou do seu dinheiro para comprar ascensão no esporte, já que o clube começou a ter sucesso após seus aportes financeiros, e pelos torcedores alemães apoiarem tanto o 50+1, veem essa situação como algo ruim. Temos como outros exemplos na Alemanha o Bayern de Munique, clube que tem o maior número de sócios no mundo, 323 mil, e tem 75% das suas ações na mão da associação originária do clube, 8,33% das ações com a Audi, 8,33% com a Adidas (uniforme e material esportivo) e 8,33% com a Allianz (naming rights do estádio). O VFL Wolfsburg, fundado em 1945 por funcionários da Volkswagen, conta com subsídio da montadora desde o início, fugindo da regra 50+1 pelo fato do longo período de investimento da empresa no clube, a qual hoje possui 95% das ações. O Bayer 04 Leverkusen é outra exceção à regra, sendo proprietária de 100% das ações do clube a empresa farmacêutica Bayer, que o fundou em 1904. Por fim, vemos um caso à parte, o RB Leipzig, clube não muito bem-visto na Alemanha pelo fato de driblar a regra de uma forma inusitada. A empresa Red Bull comprou o SSV Markranstädt em 2009, mas diferente dos seus outros times pelo mundo (New York Red Bulls, Red Bull Bragantino, etc.), o novo clube alemão não pode ter o nome da marca na identidade do clube por conta do 50+1, sendo esse chamado RasenBallsport Leipzig. A Red Bull tem 49% das ações, e os outros 51% teoricamente ainda estão com a associação originária do clube, porém, todos os associados que votam são funcionários da Red Bull, ou seja, é a companhia que manda na prática. ESPANHA Na Espanha, até a década de 90, os clubes espanhóis basicamente se constituíam como associações civis sem fins lucrativos, não tinham dinheiro e os presidentes/dirigentes ficavam pouco tempo no cargo, tendo visões apenas de curto prazo, como é no Brasil até hoje. Em 1990 foi então aprovada a Ley del Desporte pelo governo da Espanha, a qual obrigava os clubes, ou só suas equipes profissionais, a se tornarem empresas (sociedades anônimas desportivas - SAD). De todos os clubes profissionais da época, só escaparam da lei o Barcelona, Real Madrid, Athletic Bilbao e Osasuna, pelo fato de não terem dívidas, sendo esses até hoje associações esportivas sem fins lucrativos. Dentre exemplos, temos o Real Valladolid Club de Fútbol SAD, adquirido por Ronaldo Nazário em 2018, que hoje detém 72% das ações do clube (51,05% no nome da sua empresa Tara Sports e 21,68% no nome próprio), sendo daí 10% de Carlos Suárez Sureda, 9,1% da Imobiliária Agora, 4,99% da Utopía del Sur e 3,17% divididos entre demais acionistas. O Club Atlético de Madrid SAD, fundado em 1903, forma sua estrutura acionista com 65,98% da Atlético HoldCo (de Miguel Ángel Gil, CEO do clube, e Enrique Cerezo, presidente), 33% de Idan Ofer (através de sua empresa Quantum Pacific Group), e o restante entre pequenos acionistas. O Futbol Club Barcelona, associação civil sem fins lucrativos, é o quinto clube no mundo com maior número de sócios, 231 mil em 2022, dos quais alguns participam na votação de presidente e direção do clube. Recentemente, o clube passou por grandes apuros financeiros sob comando do ex-presidente Josep Maria Bartomeu, podendo ter falido caso se constituísse como empresa. Ferran Reverter, que foi CEO do Barcelona até 2022, foi um nome muito importante na reconstrução do clube. Hoje o presidente é Joan Laporta, eleito com 30.184 votos em 2021. PORTUGAL Assim como no Brasil, os clubes em Portugal tinham em sua maioria a forma de associação civil, porém, esse cenário começa a ter reformulações a partir de 1995, quando através do decreto-lei 146/95, os clubes começaram a ter a opção de transformarem suas associações endividadas, que não tinham interesse de investidores, em negócios que poderiam gerar lucro ao trazer acionistas para o clube com investimentos. Isso não foi pra frente por conta de as cláusulas não serem interessantes para os investidores. Em 1997 há uma nova tentativa para clubes profissionais se constituírem SAD (Sociedade Anônima Desportiva) com o decreto-Lei 67/97, mas a maioria continuou optando pela estrutura associativa, embora essa agora tivesse regras mais rigorosas a serem cumpridas quanto à transparência dos clubes. É só então em 2013, com o decreto-Lei 10/2013, que os clubes que participariam das competições profissionais dali em diante (Primeira e Segunda Liga Portuguesa), foram obrigados a constituírem-se SAD ou SDUQ (Sociedade Desportiva Unipessoal por Quotas). Desde então, investimentos externos foram possíveis, com cláusulas interessantes para os dois lados. Na maioria dos casos, o departamento de futebol profissional se constitui SAD/SDUQ, assim como os times B, enquanto os clubes associativos originais ficam com a base e como donos do patrimônio das equipes (estádios, símbolos, etc.). A SAD é como a nossa SAF. O modelo adotado pela maioria dos clubes portugueses hoje, vem para transformar os clubes associativos em empresas, trazendo uma melhor administração, melhor gestão financeira e mais transparência, podendo haver investimento de vários acionistas e ser uma empresa de capital aberto. As associações civis originárias, em sua maioria, são donas dessas empresas SAD que abriram e que administram o futebol, porém, vendem parte das ações para investidores, sendo obrigadas as associações civis originárias a manter pelo menos 10% das ações da SAD. O Benfica, por exemplo, continua sendo associação civil, com 290 mil sócios, porém, criou a SAD, da qual a associação é sócia majoritária (66,98%), para administrar o futebol profissional. O Grupo Valouro, da indústria do agronegócio português, de José Antonio dos Santos, tem 16,38% da SAD. Do outro lado, o modelo da SDUQ é visto como uma forma de preservar a identidade da instituição, onde o clube fundador é o único sócio, e não tem a possibilidade de outros sócios entrarem como é no caso da SAD. Dos 18 clubes da Primeira liga hoje, somente Arouca, Casa Pia, Rio Ave, Gil Vicente e Paços de Ferreira são SDUQs, e dos 18 da Segunda liga, somente é SDUQ o Spoting Clube da Covilhã. O Casa Pia, clube tradicional de Lisboa que há 83 anos não jogava na elite do campeonato português, voltou para a Primeira Liga nessa temporada 2022/23, após investimento do empresário norte-americano Robert Platek, que começou em 2020. Por conta de o clube ser SDUQ, o formato de investimento foi diferente, não havendo uma formalidade na aquisição por parte do empresário, que injetou dinheiro para melhorar o time, comissão técnica e estrutura, sem ser no papel um sócio, já que como o modelo prevê, o clube originário é 100% dono do futebol profissional. Após 2 anos de negócios bem-sucedidos entre o clube e Platek, hoje eles se preparam para se tornarem uma SAD, formalizando a participação do empresário como sócio. Um caso intrigante do futebol português é o do Clube de Futebol os Belenenses. O clube em 1999 se tornou SAD, sendo o único sócio a associação originária. Em 2012, vendeu 51% das ações para o grupo Codecity, de Rui Pedro Soares, sendo a relação entre clube e novo sócio não muito amigável desde o começo, já que o empresário não investia tanto quanto prometera, e não se importava com a tradição do clube. Essa relação foi entre trancos e barrancos até 2018, quando o clube e a SAD decidem romper, tornando-se duas entidades diferentes, sem relação. Belenenses SAD ficou com o time profissional nas divisões de elite do campeonato português, e Belenenses clube ficou com os jogadores da base, participando apenas no campeonato distrital (como o estadual do Brasil), sem calendário nacional. A SAD começou a mandar jogos no Estádio Nacional do Jamor, teve que mudar emblema e uniforme, enquanto o clube originário continuou no Estádio do Restelo, com o CT, escudo e uniforme original. Em 2020 o clube originário vendeu também os 10% que ainda detinha da SAD, rompendo 100% o vínculo entre os dois. A B-SAD, como é chamado hoje, é um time sem clube fundador com sua fundação em 2018, e joga a Liga Portugal 2. O C.F. Os Belenenses, clube originário, hoje disputa a Liga 3. INGLATERRA Após os episódios de hooliganismo na década de 1960, caracterizados por violência de torcedores nos jogos, onde pessoas chegavam a morrer, como o caso do Desastre de Hillsborough em 1989, os estádios ingleses começaram a passar por vistorias de segurança, sendo gerado o relatório Taylor. Para se adequarem então às novas regras, os times começaram a ter que investir na reforma dos estádios, e para arrecadar mais dinheiro, começaram a vender suas ações para investidores de fora, aderindo assim a maioria ao formato de empresa. Diante dessa situação, a federação inglesa de futebol (FA) não impôs uma legislação específica para os clubes, só colocou como exigência eles não terem um único sócio, tendo que negociar suas ações no mercado acionista. Hoje, enquanto clubes de outros países como Espanha, Itália, possuem em sua maioria investidores nacionais, a Inglaterra conta majoritariamente com investimento internacional. O Manchester City, um dos clubes mais ricos do mundo, foi comprado pela Abu Dhabi United Group (ADUG) em 2008, do bilionário Sheikh Mansour bin Zayed Al Nahyan, que hoje obtém 81% da organização. O restante das ações pertence à empresa Silver Lake. O Manchester United FC foi comprado pela família americana Glazer em 2005, que se mantém no controle do clube até hoje. Possuem ações de classe B, o que confere a eles poder sobre as decisões do clube, e abrem para outros investidores, por meio de ações de classe A, a possibilidade de comprar ações do clube na Bolsa de Valores de NY. Embora na Europa vemos casos como o Barcelona que se apertou financeiramente nesses últimos anos, clubes italianos como a Fiorentina, Torino, Napoli que já chegaram a falir, temos um número bem menor de escândalos financeiros no esporte como vemos no Brasil, com salários atrasados, multas não pagas, etc. Um fair play financeiro que funcione, regras claras a serem seguidas e que tenham consequências concretas no caso de não serem cumpridas, formam a base para se construir uma gestão sólida nos clubes de futebol, tratando os times e seus funcionários com a seriedade que merecem ser tratados.
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Abril 2023
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